terça-feira, janeiro 16, 2018

IMAGINÁRiO #441

José de Matos-Cruz | 01 Novembro 2013 | Edição Kafre | Ano X – Semanal – Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

TRANSGRESSÕES
Existem no território fílmico certas zonas que a indústria americana se limita a sondar, ou das quais projecta apenas um reflexo alusivo. Várias razões contribuem para que assim aconteça. Antes de mais, estamos perante uma actividade de extremo risco e sensibilidade - quer numa perspectiva económica, quer enquanto espectáculo público. Há estratégias de investimento, regras de exploração impossíveis de quebrar, para além de uma subversão mantida segundo processos convencionais. Assim ocorre, com especial acuidade, no domínio da acção criminal - em que os conflitos humanos se contrastam, inevitavelmente, pelos desígnios do bem e do mal; ou a denúncia sociológica, institucional, se circunscreve cenicamente aos signos de um epílogo expiatório. Entre os cineastas cuja carreira se distingue pela transgressão implícita num contexto, simultaneamente, melodramático e violento, Abel Ferrara culmina tais virtualidades a um nível excepcional, com O Rei de Nova Iorque / King of New York (1990)…

CALENDÁRiO

1918-05DEZ2012 - Papiano Manuel Carlos de Vasconcelos Rodrigues, aliás Papiano Carlos: Ficcionista e poeta português, militante comunista, autor de Mãe Terra (1948), co-director dos fascículos Notícias de Bloqueio (1957-1961), membro do movimento neo-realista - «Os homens construíram a cidade, construíram-na, ergueram-na sobre os ombros com cimento.» (Uma Estrela Viaja Na Cidade - 2010, excerto).

07DEZ2012-23FEV2013 - Centro Cultural de Belém/CCB expõe O Ser Urbano. Nos Caminhos de Nuno Portas - cinquenta anos de percurso profissional do arquitecto e urbanista, sendo comissário Nuno Grande.
26ABR-04MAI2013 - No Centro Cultural de Belém/CCB, Artistas Unidos apresenta A Estalajadeira de Carlo Goldoni (1707-1793); encenação de Jorge Silva Melo, com António Simão e Catarina Wallenstein. IMAG.134-405

VISTORiA

Telha de Vidro

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que – coitados – tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
– Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
Rachel de Queiroz

VISTORiA

E vós, senhores, aproveitai tudo o que vistes para vantagem e segurança dos vossos corações. E, se alguma vez estiverdes numa ocasião de duvidar, quase a ceder, pensai nos artifícios que vistes… E, lembrai-vos da Estalajadeira!
Carlo Goldoni
- A Estalajadeira


Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que uma outra, respondo que é pelas acções a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranquilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente.
Albert Camus
- O Mito de Sísifo (excerto)

COMENTÁRiO

Carlo Goldoni
Não é fácil saber que o mundo está a mudar. E Goldoni sabe-o, vai vendo o velho ruir, o novo afirmar-se, anota sem fim, tudo vai trazendo para o palco, gente, coisas, contratos, cadeiras, o palco tem um íman a que ele se oferece. Volto sempre a Goldoni, nasceu ali um teatro, nasceu um mundo.
Jorge Silva Melo

PARLATÓRiO

No segredo do meu coração, não me sinto em estado de humildade senão perante as vidas mais pobres ou as grandes aventuras do espírito humano… Entre as duas, encontra-se hoje uma sociedade que dá vontade de rir.
Albert Camus

MEMÓRiA

03NOV1913-2008 - Albert Cossery: Escritor egípcio, de expressão francesa - «Um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu sobre o mundo em que vive... Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E, quanto mais preguiçoso formos, mais tempo temos para reflectir». IMAG.205

03NOV1933-2011 - John Barry: Músico inglês, compositor de bandas sonoras para filmes, distinguido com cinco Oscars - África Minha (1985), Danças Com Lobos (1990)… «Todos esses filmes são sobre uma sensação de perda. Não sei se isso vem da II Guerra Mundial. Mas é algo que deixa marca, como não poderia deixar de ser». IMAG.342
1910-03NOV2003 - Rachel de Queiroz: Ficcionista, poeta e dramaturga brasileira - «Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem medievo. Mas o homem moderno será melhor?» (As Terras Ásperas - 1993). IMAG.299

1840-06NOV1893 - Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Compositor russo - «Tenho os nervos completamente em frangalhos. A minha sinfonia não progride. Vou morrer em breve, bem o sei, antes mesmo de acabar minha sinfonia. Odeio a humanidade, e só desejo retirar-me para um deserto» (1866). IMAG.235-261-273-280-296-310-337-364

07NOV1913-1960 - Albert Camus: Filósofo, ensaísta, ficcionista e dramaturgo francês - «Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldades passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar. De certo modo, isto era uma vantagem» (O Estrangeiro - excerto). IMAG.258

INVENTÁRiO

O Rei de Nova Iorque / King of New York (1990) transcende o talento estilístico, sofisticado de Abel Ferrara, em conluio com Nicholas St. John, o seu argumentista essencial. Em causa está Frank White, um líder do submundo, cuja saída da prisão assinala uma vaga de execuções entre facínoras e outros rivais. Carismático, sedutor, mas também fantomático, com paranóica perversidade, Frank contrapõe ao seu domínio de terror a influência política, o desprezo pela lei estrutural, eliminando aqueles que corrompem ou humilham os seus semelhantes. Simultaneamente, ambiciona restaurar um hospital no bairro onde nasceu, obtendo formidáveis lucros com o tráfico de drogas. Em seus valores desvirtuados, Frank limita-se a prosperar numa metrópole hipócrita e viciada - que O Rei de Nova Iorque exibe como atmosfera inexorável, subjugadora, entre tensões e contaminações, até ao exorcismo alucinatório… Através desta fábula de agonia, desta visão hiperrealista, sobressai um assombroso Christopher Walken como Frank White - enfim confrontado com a sua nemésis, mas sempre dominador e solitário ao enfrentar a própria sublimação da morte. Intocável, na grotesca tragédia que viveu, a ferro e fogo.

BREVIÁRiO

Arrow Vídeo edita em Blu-ray, O Rei de Nova Iorque / King of New York (1990) de Abel Ferrara; com Christopher Walken e David Caruso. IMAG.131

Sistema Solar edita Como os Loucos de Albert Londres (1884-1932); tradução de Aníbal Fernandes.

Tinta da China edita As Primeiras Mulheres Repórteres - Portugal Nos Anos 60 e 70 de Isabel Ventura; prefácio de Fernando Alves.

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