sábado, janeiro 13, 2018

IMAGINÁRiO #439

José de Matos-Cruz | 16 Outubro 2013 | Edição Kafre | Ano X – Semanal – Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

PRODÍGIOS
Em Inglaterra, um dos favoritos da Rainha Isabel I, o jovem Orlando sobreviverá - durante quatro séculos - aos tempos e costumes, preconceitos e valores, conhecendo outras terras, amando e combatendo, mudando de sexo, até à actualidade da Rainha Isabel II, em que é mãe e publicará as fantásticas memórias, sobre a íntima evolução e descoberta da sua própria identidade. Assim: 1600 / Morte - herança da soberana; 1610 / Amor - paixão pela russa Sacha; 1650 / Poesia - encontro com o lírico Green; 1700 - Política - aliança ao Khan na Ásia; 1750 / Sociedade - privilégios e rotura; 1850 / Sexo - a natureza ambígua; 19-- / Nascimento - em plena Grande Guerra; Actualidade - com a filha, fecunda afirmação. Mantendo a idade e um aspecto andrógino, Orlando transforma-se num mundo de homens; aceite como tal na época victoriana, pois «o espírito do século conseguiu alcançá-la e destruí-la», logra enfim libertar-se, não mais ligada ao destino…
A partir do romance de Virginia Woolf, eis Orlando (1992) de Sally Potter. O cinema expõe-se como imaginário esplendoroso, fascinante, pela conexão narrativa e articulação cronomediática, sobretudo em testemunho - simbólico, sugestionador, pungente, vitalista - sobre a pulsão feminina, além dos fantasmas e dos logros, das máscaras e das vicissitudes.

MEMÓRiA

15OUT1923-1985 - Italo Calvino: Escritor italiano - «Não é verdade que já não me lembro de nada, as memórias ainda estão lá, escondidas no novelo cinzento do cérebro, no húmido leito de areia que se deposita no fundo da torrente dos pensamentos...». IMAG.51-271-290-291

15OUT1923-2010 - Henrique de Senna Fernandes: Escritor e professor português, natural de Macau - «Personalidade ímpar que acompanhou sucessivas gerações de portugueses, macaenses e chineses, constituindo uma referência perene da identidade de Macau» (Aníbal Cavaco Silva). IMAG.327

1728-16OUT1793 - John Hunter: Cientista e cirurgião escocês, professor e pioneiro de técnicas experimentais, como tratamento cirúrgico de aneurismas, transplantes e regeneração de tecidos e doenças venéreas, entre os fundadores da anatomia patológica, fisiologista, coleccionador devotado ao estudo de animais de todo o mundo, serviu na Armada Britânica, sendo autor de Observações e Reflexões Sobre Geologia, a partir de estudos na planície do Alentejo (1762-1763).

1818-18OUT1893 - Charles-François Gounod: Compositor francês - «As ideias musicais brotam na minha mente como um voo de borboletas, e tudo o que eu tenho de fazer é estender a mão para as colher» (1863). IMAG.54-84-183-375
19OUT1913-1980 - Vinicius de Moraes: Poeta, dramaturgo, diplomata e compositor brasileiro - «É claro que a vida é boa / E a alegria, a única indizível emoção / É claro que te acho linda / Em ti bendigo o amor das coisas simples / É claro que te amo / E tenho tudo para ser feliz / Mas acontece que eu sou triste...» (Dialética). IMAG.248-282

21OUT1833-1896 - Alfred Nobel: Químico sueco e inventor da dinamite, misturando nitroglicerina com argila. Em testamento de 1895, estipulou os Prémios Nobel para distinguir as personalidades que, durante o ano, trabalharam em benefício da Humanidade - nas áreas da Física, Química, Fisiologia/Medicina, Literatura, Paz e (a partir de 1969) da Economia. IMAG.297

CALENDÁRiO

13MAR-27ABR2013 - Em Lisboa, no Teatro da Politécnica, Artistas Unidos apresenta 2013 - exposição de pintura / escultura de Sérgio Pombo.

BREVIÁRiO

Artificial Eye edita em Blu-ray, Orlando (1992) de Sally Potter; com Tilda Swinton e Billy Zane. IMAG.328

Harmonia Mundi edita em CD, Georg Friedrich Händel [1685-1759]: Il Pastor Fido por Lucy Crowe e Anna Dennis, com La Nuova Musica, sob a direcção de David Bates. IMAG.196-222-243-253-296-376-410-411-426

VISTORiA

E assim, mesmo agora, se me perguntam que forma tem o mundo, se perguntam ao mim mesmo que mora no interior de mim e guarda a primeira impressão das coisas, tenho de responder que o mundo está disposto sobre uma porção de sacadas que irregularmente se debruçam sobre uma única grande sacada que se abre no vazio do ar, no parapeito que é a breve tira do mar contra o imenso céu, e naquele peitoril ainda se debruça o verdadeiro de mim mesmo no interior de mim, no interior do suposto morador de formas do mundo mais complexas ou mais simples, mas derivadas, todas elas, dessa forma, bem mais complexas e ao mesmo tempo muito mais simples, na medida em que todas estão contidas naqueles desaprumos e declives iniciais ou deles podem ser deduzidas, daquele mundo de linhas quebradas e oblíquas entre as quais o horizonte é a única recta contínua.
Italo Calvino
- O Caminho de San Giovanni (excerto)

Procura-se Um Amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.
Vinicius de Moraes

Estava um belo dia de outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem toda alumiada de tons metálicos, como só acontece nos meses de Outubro e Novembro. O Belo Adozindo escapulira de casa cedo, evitando encontrar-se com o pai. Eram sete e meia e encaminhava-se para a Praia Grande, onde embarcaria num barco à vela com amigos, para umas horas ao largo de Macau. Ia apetrechado para a pesca, o caniço e as linhas novas, os anzóis vindos de Hong Kong, duma casa da especialidade, o cesto contendo a isca. Vestia-se todo aperaltado e nada conforme com o à vontade que tais excursões exigiam. Seria ridículo se não procedesse com naturalidade e espontaneidade, porque era incapaz de se apresentar doutra forma. O grande conquistador da praça tinha responsabilidades quanto a manter a sua fama. Nunca se sabia quem ia encontrar, embora ainda fosse cedo.
Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourada e não viu nenhum riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasco da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como garotos irrequietos. Para encurtar caminho, dobrou a primeira esquina, intemando-se na área do Cheok Chai Un.
Até então, esquivara-se do bairro de má fama, mas não acreditou que alguém fizesse mal, em pleno dia, a um homem pacífico que ia inocentemente à pesca, com o único peso na consciência de faltar ao trabalho. Mas os berros do pai podiam com facilidade serem amansados.
Chegou, sem novidade, à zona do poço, numa hora de grande actividade, as aguadeiras e lavadeiras a puxar os baldes ou formando bicha, num borborinho de vozes que soavam alegremente. E tudo teria passado despercebido, não ficando nada na memória, senão um quadro inédito se, nesse instante, não espadanasse uma gargalhadinha moça e sadia a evolar-se pelo ar, muito perto. Deteve-se primeiro curioso, depois com súbito interesse pela beleza rústica donde partia o riso. Gostou do que viu. Nunca contemplara uma moça tão atraente, de pé descalço, e nem podia adivinhar que um bairro de «facínoras e desordeiros» entesourasse uma bela jóia como aquela. Nunca vira, também, uma trança igual, tão preta que fulgia ao sol.
Henrique de Senna Fernandes
- A Trança Feiticeira (excerto)
COROLÁRiO

Charles- François Gounod

Vencedor do Prix de Rome, em 1839, Gounod (1818-1893) foi anos mais tarde desviado da vida religiosa por Pauline Viardot. Várias tentativas infelizes na ópera e uma Messe Solennelle antecedem o imenso sucesso que obtém com Faust [1859]. Êxito que (quase) repetirá com Roméo et Juliette, em 1867. É hoje ainda sobre este par de obras que repousa a posteridade de Gounod, sem esquecer, claro está, o famosíssimo Ave Maria, sobre o Prelúdio I do Cravo Bem Temperado. Modernamente, a ópera Mireille [1864] vem tendo certa reapreciação. Foi professor de Bizet e o seu estilo influenciou as gerações de músicos franceses que lhe sucederam.
08JAN2009 - Diário de Notícias

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